Passado o Oscar, e vendo que nem todo mundo curtiu a escolha de Melhor Animação, resolvi fazer essa postagem para falar o porquê Coco é muito importante para a cultura pop em geral. Também vou falar sobre a importância do Oscar para o filme e como ele verdadeiramente o mereceu. A coluna não tem spoilers sobre a história do filme.
Pegando o histórico da Disney durante muito tempo, ela foi bastante criticada pelos seus contos de fadas, principalmente no tocante à representação da mulher e de etnias não-brancas. Dos filmes lançados até o final da chamada Renascença da Disney (1989-1999), poucos conseguiram sair do “padrão”, mostrando personagens femininas mais fortes e mostrando culturas fora dos EUA e Europa. Eles são: A Bela e a Fera, Aladdin, Pocahontas, Mulan e considerando as personagens Esmeralda e Meg, Corcunda de Notre Dame e Hércules. Não considerei aqui animações onde a maioria dos personagens são animais porque o cerne da discussão dessa coluna é mais voltado para representatividade.
Antes de falar de como a Disney está hoje, vou falar sobre a Pixar. Se pegarmos todas as animações desde a criação dela, vemos um padrão. A maioria dos filmes lançados pela empresa tem como protagonistas animais ou coisas não-humanas, o que, como falei mais acima, não interessa muito para a discussão aqui. As exceções são Os Incríveis, Up e Valente e a grande maioria dos personagens humanos dos filmes são americanos ou europeus. Tirando Os Incríveis, as outras duas animações foram lançadas após a compra da Pixar pela Disney.
Em 2013, enfim, a Disney conseguiu voltar a fazer sucesso com uma animação sob a marca principal dela, porque apesar da compra da Pixar, existia, ao menos aparentemente, uma divisão de foco. Frozen, cujo sucesso dispensa comentários, foi o resgate da Renascença que a Disney lutou para conseguir. E apesar da história ter umas mudanças consideráveis no gênero de conto de fadas (inclusive fazendo piada com animações mais antigas), ainda é a história de uma princesa e rainha européia. Eu encaro esse “resgate” ao passado da Disney como uma forma de tomar fôlego para conseguir voltar.
Com Moana, no entanto, as mudanças começaram de forma bem mais evidentes. Temos uma personagem feminina forte em uma “jornada de herói” e ela é da Polinésia. Dá para traçar um paralelo e dizer que Moana é a “Mulan dessa geração” e isso é algo muito incrível. Além disso, com Moana, a Disney abriu um novo precedente chamando Auli’i Cravalho para dublar a personagem principal depois de várias audições. Auli’i nasceu no Havaí e - lembrando das discussões que rolaram sobre a dublagem de Pantera Negra no Brasil - você pode se perguntar o que isso muda para nós que assistimos a animação. Provavelmente, nada, mas imagina o quanto isso significou para a vida dessa garota que morava em uma ilha e ano passado foi parar no palco do Oscar cantando para milhões de pessoas no mundo todo.
Querendo ou não, com essa atitude, a Disney deu voz para uma pessoa que não tinha perspectiva nenhuma de ficar famosa, mesmo tendo talento de sobra. Com Coco, não foi diferente, mas agora ao invés de ter apenas um descendente de mexicanos na voz do protagonista (Anthony Gonzalez), grande parte das vozes foram dubladas por mexicanos ou descendentes de mexicanos. Isso tudo em uma época em que Trump é presidente e a onda de conservadorismo e xenofobia dos EUA cada vez aumenta.
O Filme em Si
Passado todo esse resumão da cronologia das animações, vamos falar de Coco em si. Pra mim, ele é um divisor de águas nessa questão Disney/Pixar. Como disse anteriormente, mesmo com a compra da Pixar, dava para sentir uma divisão do que era produzido. Coco, no entanto, me passa muito a sensação de um filme Disney, mas com a sagacidade da Pixar, como a fusão do melhor das duas empresas.
A história tem dois pontos principais: a cultura mexicana, especialmente a celebração do Dia dos Mortos, e a família. Só que os dois pontos estão tão intrinsecamente ligados que podemos dizer que são um só. A estrutura familiar que é mostrada é muito característica de países latinos. Eu, por exemplo, enxerguei muito da minha família no que foi retratado. O mais interessante, também, é ver como ela é um papel central na vida do personagem principal. A única coisa que Miguel queria fazer era cantar, mas a família não queria porque ser um cantor poderia levá-lo para longe deles.
Perceba que, aqui, a família não é a vilã, não é composta de pessoas que não gostam de Miguel ou que querem impedir ele de seguir o sonho por um motivo maligno, mas por amá-lo demais e achar que isso não é vida para ele. Mais uma vez eu consigo enxergar muito disso na minha própria família. Outro detalhe que mostra o quanto o roteiro desse filme é interessante: ele não é um conto de fadas, tão pouco é jornada do herói. É apenas um garoto que quer ser cantor e se vê impedido por causa da pressão familiar. A história gira em torno da família e é ela que faz tudo andar.
Não só a história ganhou contornos latinos, mas também as canções e - acredito que - as falas também (eu assisti dublado, e imagino que as palavras em espanhol no dublado foram mantidas assim porque na versão original estavam em espanhol). Enquanto muitas músicas tiveram apenas algumas palavras em espanhol, como Un Poco Loco ou Proud Corázon - provavelmente pelo filme ser voltado ao público infantil americano - há uma canção que me chamou atenção e ela se chama La Llorona (Chorona, em pt-br). Ela foi a primeira música que eu pesquisei quando cheguei em casa e fiquei muito surpreso com a história dela.
La Llorona é uma lenda do folclore mexicano e tem mais de 500 anos. A música criada sobre o conto popular parece ter sido concebida na metade do século 19, ficando mais conhecida em 1993 com a interpretação de Chavela Vargas. A mesma cantora fez uma participação em Frida, filme de 2002 com Salma Hayek. Clique AQUI para ver a interpretação da música no filme. Como detalhe adicional, Frida Kahlo também aparece na animação.
O interessante dessa música em si, além do fator histórico importantíssimo, é que é uma música em espanhol em uma animação americana. Eu acho incrível porque, como bem sabemos, os americanos são muito amáveis com outras línguas que não o inglês. Foi corajoso da parte da Disney colocar uma canção em espanhol no meio do filme, preservando a memória da mesma e da cultura mexicana em si.
Curiosidades dessa música: para quem viu Coco em inglês, recomendo ouvir a nossa versão pt-br, que ficou muito boa e está sendo elogiada até por mexicanos. Clique AQUI para ouvi-la. Além da versão “espanhola americana” da música, há a versão espanhola para os países latinos e a Espanha - e tem bastante diferença, sendo a minha versão favorita. Clique AQUI para ouvi-la.
Também cabe falar que a música não é colocada de forma gratuita na história. Aliás, em termo de roteiro, foi bem interessante porque é uma música que todos no México conhecem, logo todos sabem cantar e tocar. Casa muito bem com a cena em que está inserida.
A Importância do Oscar
Depois de tudo que falei sobre o roteiro e sobre o peso cultural que Coco carrega, vamos falar das coisas que realmente importam para uma empresa como a Disney: dinheiro e premiações. Fazendo uma comparação com Frozen, Moana e Coco, temos o seguinte quadro: Frozen fez $1,276 bilhões e ganhou dois Oscars (Melhor Animação e Melhor Canção Original), Moana fez $643 milhões e não ganhou Oscar e Coco fez $744 milhões e ganhou dois Oscars (Melhor Animação e Melhor Canção Original). Detalhe importantíssimo sobre bilheteria de Coco: foi o filme com a maior arrecadação da história do México com $57 milhões. Para se ter uma ideia, a bilheteria no Brasil de Coco foi de $9 milhões.
Só que se pararmos para pensar, onde está Moana hoje? Se ouve muito pouco sobre e ela concorreu ao Oscar em duas categorias ano passado. Coco deve ser outra animação que pode acabar caindo no esquecimento. Enquanto isso, Frozen está vivo até hoje, com atrações no parque, dois curtas, com sequência já em produção e tudo mais que tem direito. Não estou fazendo juízo de valor sobre o porquê Frozen ter sido super bem recebido, mas o fato é que as três animações tem muitas qualidades e todas elas mereciam impactar o mundo da forma como Frozen impactou, mas isso não aconteceu.
A importância da aclamação da crítica e das premiações em cima de Coco é justamente mostrar para Disney que esse é o caminho a ser seguido. Que ela pode se aventurar e fazer animações sobre outras culturas, contando histórias e representando povos que muitos adultos, que dirá crianças, nem fazem ideia que existe. E acima de tudo, dar voz para talentos que muitas vezes não conhecemos por estarmos na bolha americana. Muitas pessoas não só do Brasil como do mundo, só consomem a Disney porque ela é a maior referência de animação (longas) do mundo. Pouquíssimas pessoas tem acesso a longas de animação alternativos. Por isso, quando vejo a Disney fazendo animações como Moana e Coco, acho que a gente não deve esnobar só porque a Disney lança animações todo ano. A gente tem que querer que ela produza mais animações como essas.
Imaginem quantos mexicanos e latinos vivem hoje nos EUA. Além de sofrerem xenofobia desde sempre, ainda tem que lidar com Trump no poder e a onda crescente de conservadorismo no país. Imaginem eles que, na maioria das vezes, foram representados nas mídias como empregados e com estereótipos ridículos. Eles puderam ir ao cinema e presenciar a cultura deles ser retratada de forma belíssima e com uma história inspiradora para as crianças. Imagina no México como eles se sentiram sendo homenageados por uma mídia que muitas vezes marginalizaram eles. Além de ser uma ótima animação, a importância de Coco perpassa as telas de maneira histórica.
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