sábado, 26 de setembro de 2015

Que Horas Ela Volta?



Está em todos os lugares. Depois de um lançamento modesto no Brasil, Que horas ela volta? ganhou a atenção do público após Regina Casé (Val, no filme) e Camila Márdila (Jéssica, filha de Val) ganharem juntas o prêmio de melhor atuação no festival de Sundance, um dos mais importantes dos EUA. Confesso que só fui saber mais sobre o filme depois da premiação e me interessei pelo que ouvi falar. Após assisti-lo, só houve uma constatação: preciso falar sobre, preciso escrever sobre. Por isso, decidi fazer uma análise sobre o roteiro, realçando todas as mensagens importantes que eu enxerguei.

Atenção: Esse texto conterá spoiler sobre o filme todo.
Se você chegou aqui e não sabe sobre o que o filme trata, calma que vou apresentar uma pequena introdução. Que horas ela volta? mostra a história de Val, uma empregada doméstica que vive na casa dos patrões em São Paulo há mais de dez anos. Ela deixou sua filha no Nordeste e foi para São Paulo em busca de uma vida melhor e melhores condições para ela e a filha dela. Esse é o ponto de partida.
O filme me ganhou logo nos primeiros minutos. Ao saber da história acima, você consegue conectar o título com o fato da filha de Val querer saber quando sua mãe irá retornar de São Paulo. Só que, na primeira cena, vemos Val cuidando de Fabinho, filho da patroa, ainda criança. Na cena, o garoto pergunta que horas a mãe dele irá voltar do trabalho. A partir daí, você consegue conectar as duas vidas: Val e sua filha Jéssica, que está no Nordeste, e Bárbara, a patroa, e Fabinho, que brinca e se diverte com a empregada enquanto sua mãe está no trabalho.
O tempo passa e vemos a rotina da casa de Bárbara: “Val, pega o sorvete?”, “ Val, pode tirar a mesa.”, “ Val, quero guaraná.”, “ Val, pode ligar a luz da piscina?”. Isso e muito mais. O triste disso tudo é constatar que isso é normal aqui no Brasil. É parte da nossa cultura achar que uma empregada doméstica é sinônimo de escrava. Além de arrumar a casa, lavar, passar, tomar conta dos filhos e cozinhar, ainda é dever “brincar de fazer o que seu mestre mandar”. Alguns podem pensar “mas Brenno, ela recebe para isso”. Eu discordo. Primeiro que, uma empregada doméstica é contratada para tomar conta da casa. A partir do momento que ela cuida de uma criança ela não é mais só empregada, ela é babá também, mas só recebe por um serviço. Além disso, será que a mão da pessoa irá cair se ela pegar um sorvete, levar a louça para a pia ou ligar uma luz?
Vocês devem estar pensando agora “nossa, então os patrões são os vilões dessa história, pobre Val”. Só que não. E isso é uma das muitas qualidades do roteiro. Não existe vilão ou mocinho, existem pessoas reais que seguem uma cultura tão cegamente que não conseguem nem se dar conta de seus atos. A maior prova disso é a Val. A Val é completamente submissa aos patrões. Ela mesma se coloca no papel de escrava e fiel serva porque ela foi ensinada que esse era o lugar dela. Da mesma forma que a Bárbara foi ensinada que o papel dela era mandar e colocar a empregada em “seu devido lugar”. Acaba que, na realidade, as duas são vítimas de uma cultura de “casa grande e senzala” do tempo da escravidão e que se perpetua até hoje. Por mais que a Val seja SUPER IMPORTANTE para a família da Bárbara e que seja considerada “DA FAMÍLIA”, há uma clara distinção. Val tem seu próprio sorvete separado. Ela não pode comer o sorvete caro. Ela também não pode sentar na mesa dos patrões e a única vez que a vemos tomando um café no filme todo, ela está em pé do lado da mesa vazia. Isso é algo perturbador. É aquele tipo de imagem que grita na nossa cabeça.
Mesmo com as duas personagens, de certa forma antagônicas, seguindo a mesma diretriz, há uma diferença clara entre as duas. Val endeusa Bárbara com muito carinho e admiração, só que não é recíproco. Bárbara pode até gostar de Val, mas não como amiga. Talvez, pode ser como colega. O que fica nítido é: Val dedicou mais de dez anos da vida dela para cuidar da casa e do filho de Bárbara e mesmo assim, a patroa não enxerga isso. Trata a empregada de forma diferente do que trata uma amiga, por exemplo, que na hora do aperto não faria 1/10 do que Val faria para ajudar. “Ah, mas a Val só se dedicou 10 anos para cuidar do filho e da casa de Bárbara porque ela recebeu por isso” você poderia imaginar. OK, ela recebeu, mas existem pessoas e pessoas nesses mundo. Há pessoas que consideram o trabalho como o meio de sustento para pagar as dívidas e tem aquelas pessoas que sabem que precisam pagar as dívidas, mas que trabalham com amor. A Val do filme é a segunda pessoa.
Há uma relação muito bonita entre Val e Fabinho, filho de Bárbara. Ela é, de fato, a segunda mãe dele (para quem não sabe, o título em inglês ficou The second mother, A segunda mãe em tradução livre). Ela poderia tê-lo tratado como filho da patroa e apenas vigiá-lo, como muitas babás fazem. Porém, ela sempre o apoiou, o aconselhou e deu todo o suporte amoroso que a mãe dele não pôde ou estava cansada demais para dar. A discrepância entre a relação de Fabinho e as duas mães é tão grande que é nítido notar de quem o garoto gosta mais. Será que nem o amor do filho por uma pessoa não é capaz de fazer Bárbara amá-la como uma igual? Por isso que chegamos aonde chegamos. O mundo hoje coloca a relação empregador/empregado acima da relação pessoa/pessoa.
Felizmente, há uma virada na história quando Jéssica, filha de Val, chega em São Paulo para prestar vestibular. Se Val e Bárbara representam o pensamento arcaico de quinhentos anos atrás, Jéssica e Fabinho representam a mentalidade questionadora da atualidade. Como falei acima, Fabinho tem uma relação fraternal com Val. Isso porque para ele não há distinção entre ela e a mãe dele. O fato de Val ser de uma classe social menos favorecida que a dele ou ser empregada onde ele mora não importa nada. Mesmo sem perceber, ele se rebela contra tudo o que as duas mães dele acreditam simplesmente por tratar a empregada como gente.
Jéssica, no entanto, sabe exatamente como a roda gira, mas se faz indiferente só para vê-la girando ao contrário. Ela não acredita que Val more no quartinho de empregada nos fundos da casa dos patrões. Para ela, isso é inaceitável. Por falsidade, Bárbara a trata como se fosse da família e por interesse, Carlos, o marido de Bárbara, o faz também. Jéssica faz o que qualquer pessoa que não entendesse da vida faria: aceita tudo. Todos estranham o comportamento da garota. Fabinho acha que ela é muito confiante e Val acha que a filha dela olha para tudo como se fosse Presidente. A verdade é que Jéssica não abaixa a cabeça. Ela tem plena consciência de que ela é uma pessoa como outra qualquer e que é capaz de fazer o que todos são capazes. Por isso, ela se porta com dignidade e isso não combina com o papel de filha da empregada nordestina característico do senso comum. Era para ela ser aquela garota tímida, calada, na dela, que só se pronuncia quando outros dão oportunidade.
Há duas sequências no filme que se conectam de uma forma memorável. Ao chegar, Jéssica diz para os patrões de Val que vai prestar vestibular para arquitetura na FAU (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo). Todos ficam com pena da garota porque arquitetura na FAU é muito concorrida. Jéssica diz que a escola onde estudou no nordeste não era tão boa, mas que ela teve um professor de história que a incentivou a correr atrás dos sonhos dela. Bárbara chega até a dizer que “o país está mudando mesmo”. No final do filme, Fabinho não passa para a próxima fase do vestibular enquanto Jéssica passa com uma pontuação muito alta. Bárbara fica completamente surpresa e chocada. Como poderia a filha da empregada tirar uma nota tão alta e o filho dela não?
Tudo isso é um tapa na cara da sociedade que ainda acha que só por ser pobre e não ter tido boas condições de ensino uma pessoa não é capaz de conseguir atingir seus objetivos. É claro que para Jéssica foi bem mais difícil do que seria para Fabinho passar, mas ela mostrou que o que importa mesmo é a força de vontade. Se ela seguisse o mesmo pensamento de Bárbara, ela nem tentaria, afinal, seria quase impossível para ela passar. A presença dela de espírito, que pode parecer soberba, no entanto, a fizeram conquistar um sonho. Jéssica é uma personagem tão forte que conseguiu mudar até a cultura que a mãe carrega e isso não é qualquer coisa.
Depois de conseguir ficar no quarto de hóspedes e comer o sorvete caro, Val previu que Jéssica poderia aceitar entrar na piscina caso fosse convidada para tal. Ela proibiu terminantemente a garota de aceitar tal convite e disse para ela inventar uma desculpa, assim como a própria Val inventou na primeira cena do filme quando Fabinho, ainda criança, a convidou para entrar. Segundo Val, os patrões oferecem as coisas por pura educação e por saber que os empregados não vão aceitar. É uma norma social. Só que Fabinho e um amigo, que não sabem nada dessas normas sociais, jogam Jéssica na piscina. Essa é, literalmente, a gota d’água.
Bárbara pede para esvaziarem a piscina porque ela viu um rato dentro da mesma e pode ter certeza que, para ela, havia mesmo. Val tratou logo de achar um quarto para sua filha morar, afinal, não poderia mais compactuar com essa total falta de limites da filha. Como assim Jéssica quer ser tratada da mesma forma que todas as pessoas são tratadas normalmente? Acaba que o quarto que mãe e filha acharam não está mais disponível e “The precious little daughter”(a filhinha preciosa, em tradução livre, nas palavras de Bárbara) tem que voltar a morar na casa dos patrões. Porém, Bárbara resolve ser clara e taxativa: ela não quer que Jéssica fique na área comum da casa. O lugar dela é no quarto de empregada da mãe.
Essa passagem é super interessante para analisarmos o modus operandi da cultura do dinheiro, fama e poder. Enquanto cada um sabe “o seu lugar” na relação tudo está mais do que certo. Tratam todos falsamente como iguais, distribuem sorrisos e simpatia. Quando algo foge do que é “socialmente aceitável” tudo muda de figura. É a hora de mostrar quem pode mais, quem manda mais, quem tem mais dinheiro e quem é dono do lugar. É por isso que existem esses casos de juiz que processa agente de lei seca por pará-lo e multá-lo e outras coisas estapafúrdias. Muitos se acham muita coisa porque o poder aquisitivo é mais alto, mas se esquecem que viemos e vamos para o mesmo lugar. Não há dinheiro no mundo que mude isso. Sobra arrogância e falta humildade nos dias de hoje.
Eu enrolei e enrolei e não falei como Jéssica conseguiu vencer a cultura da mãe dela. Pois bem, depois dela acertar uma pontuação muito alta no vestibular, Val fica super feliz por sua filha. Tão feliz que entra na piscina, onde o nível da água bate no pé, de roupa e tudo para ligar para a filha. Só essa cena vale o filme todo. É uma cena que pode parecer boba, mas representa MUITA COISA. Ela representa liberdade. A mesma liberdade que eu tenho quase certeza que os escravos sentiram com o fim da escravidão. Aquela sensação de se olhar no espelho e se enxergar como uma pessoa e não uma sub-pessoa. Tudo isso, ela aprendeu com a filha dela e aquela gota d’água que foi o suficiente para fazer cair a máscara de Bárbara foi também o suficiente para ver que o lugar dela, Val, não é ali. Com a ida de Fabinho para um intercâmbio de seis meses e com a chegada de uma surpresa (que quem viu o filme sabe qual é), Val sente que esse é o momento de deixar de ser a segunda mãe de Fabinho e passar a ser a primeira de Jéssica. 
Isso tudo é apenas um grão de areia do que o filme quer passar. Ele merece ser visto mil vezes nos cinemas e revisto sempre que passar na TV. Além de um roteiro impressionante de Anna Muylaert que faz o queixo ficar caído o filme todo, a direção da mesma é uma obra à parte. Tudo é visto do ponto de vista da empregada e não do patrão como é em 99% dos filmes. As atuações de todos do elenco são impecáveis, com destaque, claro, para Regina Casé, que fez a Val, e a Camila Márdila, que fez a Jéssica. Não é à toa que as duas ganharam o prêmio de melhor atuação. Eu sinceramente espero que o Brasil se contagie com a força desse filme ao invés de não vê-lo por puro preconceito do cinema nacional. Afinal, é muito importante que tenhamos mais Fabinhos e Jéssicas e menos Bárbaras no mundo.
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