terça-feira, 14 de março de 2017

O que aprendemos com "A Bela e a Fera"

Enquanto a versão em live action de A Bela e a Fera não chega aos cinemas, resolvi escrever um texto especial sobre as mensagens passadas pela animação de 1991. Revi o filme, dessa vez legendado para me preparar para a estreia do longa e me deparei com um roteiro rico e lúdico. Esqueça Zoofilia e Síndrome de Estocolmo, que podem ser enxergados na produção de forma deturpada. A Bela e a Fera pode ser considerado um grande divisor de águas na Disney e tudo por causa dos temas apresentados pela história tão antiga quanto o tempo.
- Prólogo
O filme começa com uma explicação de como um príncipe se transformou em uma Fera e acabou condenado a todos que viviam no castelo dele a virar mobília. Logo de cara, temos uma crítica bem no estilo “Não julgue o livro pela capa”. O príncipe mimado, rude e egoísta destratou uma senhora por achá-la feia e repulsiva. Negou uma gentileza, em forma de rosa, e não ajudou uma pessoa que estava necessitada por causa da aparência. Após se revelar uma bela feiticeira, o príncipe pediu perdão, mas era tarde demais. Por causa do preconceito dele, acabou amaldiçoado de forma que o exterior refletisse o interior, assim como todos os servos dele. Para conseguir reverter o feitiço, o príncipe teria que aprender a amar e ser amado mesmo no corpo de uma fera. Praticamente, ele teria que achar uma pessoa que não o julgasse como ele julgou a feiticeira quando ela estava disfarçada.
- Bela
Depois dessa introdução incrível, temos a primeira música, que é uma das minhas preferidas dessa animação. Algo bem interessante que me chamou atenção é que a música fala sobre a Bela, mas ao mesmo tempo aborda a sociedade em que ela vivia como um todo. Ou seja, na realidade, para entendermos a Bela e o quanto ela é diferente, precisamos de um contexto, que é bem representado pela vizinhança onde ela vive. Vimos o príncipe sendo amaldiçoado por causa do seu mal julgamento e o que vemos nesse número musical é a sociedade julgando Bela por ser completamente diferente deles. Podemos dizer, então, que o tema principal do filme é preconceito e como ele influencia na vida das pessoas. Isso só mostra que a Disney abordar o primeiro personagem abertamente gay dela na versão live action dessa animação não foi por acaso. É apenas um complemento. O fato dessa notícia chocar bastante e ser recebida com muito preconceito chega a ser trágico-cômico.
Voltando à cena (vou falar da versão original em inglês, porque tenho alguns problemas com a versão pt-br), Bela diz que ela vive em uma cidade pequena cheia de pessoas pequenas e que nada nunca muda. Ela é ignorada pelo padeiro ao começar a falar sobre um livro que ela acabou de ler. Bela é descrita pelas pessoas como estranha por ser distraída, com a cabeça nas nuvens e não conseguir se encaixar em nenhum grupo. É muito interessante notar que ela é uma das únicas pessoas, se não a única, com aquele tom de azul na roupa. Ela realmente fica destacada da multidão.
Ao mesmo tempo em que vemos as pessoas julgando Bela, conseguimos ter vislumbres de como aquela sociedade é, ou seja, como são as pessoas normais. De cara, podemos dizer que as pessoas são fofoqueiras e gostam de tomar conta da vida dos outros, já que eles vivem cochichando sobre Bela, enquanto ela está ali sem fazer mal pra ninguém. Também podemos ver um homem casado sendo repreendido por paquerar uma outra mulher. Além de todos terem inveja por causa da beleza dela e achá-la engraçada ou peculiar por ser tão diferente. O único que a entende é o dono da livraria que empresta os livros e até a presenteia com um que é o preferido dela. Isso mostra um contraponto entre pessoas com um grau menor de instrução e o vendedor, que é um senhor mais culto. Apresentando que pessoas mais esclarecidas tendem a ser menos preconceituosas.
Nessa música também somos apresentados ao Gaston, o vilão do filme, e fica nítido que ele se assemelha muito ao príncipe que foi enfeitiçado. A única diferença talvez é que o príncipe deve ser mais culto por vir de família nobre. Ele, Gaston, assim como todos da sociedade, acha que mulheres não devem ler, além de não saber como alguém consegue ler livros sem figuras. Bela se mostra, desde então, uma figura forte, independente e decidida. Ela consegue desviar dos flertes de Gaston, defende o pai de insultos e ainda é irônica em diversos momentos. A relação dela com o pai é baseada em companheirismo e suporte. Os dois são deslocados e os dois incentivam um ao outro a serem o que eles quiserem. A ligação é tão forte que faz Bela ir sozinha atrás do pai e até trocar de lugar com ele em uma prisão dentro de um castelo com uma Fera. Posso estar enganado, mas eu acho que ela é a primeira princesa da Disney a ir atrás dos seus próprios objetivos com coragem, determinação e de forma heroica.
- Relação da Bela e a Fera
Muito é falado sobre Síndrome do Estocolmo e Zoofilia para caracterizar a relação dos dois personagens principais e eu também vou tocar nesse assunto agora. Eu sinceramente acho que nem deveria passar pela cabeça das pessoas Zoofilia, a não ser que fosse pra zoar ou querer forçar a barra mesmo. Todas as transformações que o povo do castelo sofreu foram metáforas da personalidade de cada um. O príncipe era egoísta, rude e não tinha amor, logo, foi transformada em uma Fera (nem tão) horripilante; Lumière é extrovertido, pra cima, alegra e ilumina onde está, logo virou um candelabro; Madame Samovar é generosa e acolhedora, se transformou em uma chaleira, e assim vai. A questão, justamente, não era para alguém se apaixonar pela Fera por causa do exterior, mas sim pelo interior. Não há nenhum relacionamento físico entre os dois tirando um abraço. Nem amoroso teve.
Sobre a Síndrome de Estocolmo, posso até entender porque algumas pessoas apontam isso, mas na minha visão não passa de um erro de interpretação. Logo após que trocou de lugar com o pai e ficou no castelo, Bela se muda para um quarto onde começa a chorar e se recusa a sair pra jantar com a Fera. Os dois brigam, mas ela se mantém firme até o final. Mais tarde, ela fica com fome e sai do quarto para comer alguma coisa. É então que temos a música “À vontade” (Be our guest, no original), onde a mobília faz de tudo pra ela se sentir confortável. Lumière e Horloge resolvem fazer um tour pelo castelo com ela, até que ela vai pra Ala Oeste, que a Fera havia proibido todos de irem. Ela acha a rosa do encantamento e é surpreendida pela Fera, que fica furiosa (trocadilho não foi intencional) e a expulsa do castelo. Isso mesmo, ele a expulsa do castelo e ela sai correndo, pega o cavalo e VAI EMBORA. Reparem que nesse momento ela está livre para fazer o que ela quiser e que, nesse curto de espaço de tempo, ela e a Fera só brigaram e nunca houve nenhum laço de afeto sequer.
O que acontece é que Bela é atacada na saída por lobos e a Fera a salva, só que acaba ferida no processo. Bela poderia deixar a Fera morrer na neve, poderia ir embora, já que estava livre. Porém, ela tem compaixão e se sentiu grata pela ajuda. Ela leva a Fera pro castelo e o ajuda a se recuperar. Mais para frente, a animação dá a entender que ela ainda está presa no castelo, mas acho que isso é um furo de roteiro à partir do momento que a Fera a expulsou de lá. Ela meio que ficou porque quis e começou a desenvolver uma AMIZADE com a Fera. Muitos podem achar que eles estavam apaixonados na cena da dança. A Fera claramente estava, tanto que ele prova isso deixando Bela ir encontrar o pai. Porém, para mim, a Bela não estava, ou se estava ela não tinha se dado conta ainda. Até porque se naquele momento os dois estivessem se amando, o feitiço se quebraria ali e a Fera voltaria a ser príncipe de novo. Acho que nesse caso falta uma visão mais inocente para diferenciar uma amizade de um relacionamento amoroso.
A relação da Bela e a Fera é bonita justamente por mostrar algo construído com o tempo. A Fera tinha intenção de conquistá-la sim, mas a Bela não. Ela só estava ali vivendo. Muitos também falam sobre Relacionamento Abusivo, onde Bela é maltratada, mas resiste e consegue mudar o seu companheiro. Só que não é isso que é passado. Primeiro, eles não tinham relacionamento algum. A Fera queria conquistá-la para quebrar o feitiço, então, depois dos conselhos da mobília, o príncipe percebeu que precisava mudar. Não foi a Bela que quis mudá-lo. Ela não estava nem aí para ele. A mudança partiu dele. À partir do momento que a Bela percebe que ele está tentando ser uma pessoa melhor, ela também deixa de ser um pouco turrona. Tem uma cena incrível, aliás, sobre o começo disso tudo que é quando a Bela, vendo que a Fera não consegue tomar o mingau de colher, toma diretamente da tigela. Ao mesmo tempo, a Fera também começa a perceber os gostos de Bela e, por isso, a presenteia com a biblioteca. Perceba que dessas percepções nasce uma amizade nos moldes do que Bela tem com o pai. Cada um apoiando o outro, mesmo que eles não sejam socialmente aceitáveis. É um relacionamento que foi construído na base da amizade, de entender e prestar atenção no outro, sem preconceitos e levando em consideração o que a pessoa é. Acho que essa mensagem é muito mais importante do que tentar acusar a Disney de Zoofilia ou Síndrome de Estocolmo.
- Gaston
O mais interessante do Gaston não é o fato dele se enxergar como O cara, mas sim da sociedade enxergá-lo assim. Ele só reforça a ideia de um homem primitivo, que acha que pensar é perigoso e que o homem nasceu para ser forte, saber cuspir, caçar… enfim. Só que ele é admirado por todos naquela cidade. Ele é o homem que todos os homens querem ser e que todas as mulheres querem casar. Ele é um modelo a ser seguido, enquanto que a Bela é uma figura engraçada e peculiar. Essa mensagem do filme é muito importante porque vemos que aquela sociedade exaltava o vilão. Para eles, era Deus no céu e Gaston na Terra. Enquanto isso, eles desprezavam Bela por ser diferente e só reparavam nela por causa da beleza. O que a animação quer mostrar é que você deve ser você mesmo independente do que a sociedade determina como certo, porque o fator cultural é muito forte e às vezes algo que era certo algum tempo atrás, não é mais certo hoje, mesmo que todos continuem fazendo por hábito.
- Povo vs Fera
O momento em que Gaston reúne a população para ir atacar a Fera tem tantos significados que fico boquiaberto com essa animação. Primeiro de tudo, algo que não tinha reparado nas outras vezes que eu tinha visto o filme: Gaston sabe que a Fera não oferece perigo nenhum, mas ele cria essa imagem demoníaca porque ele percebe que a Bela gosta da Fera. Reparem que aqui esse “gostar” não quer dizer explicitamente amor, já que se fosse amizade, Gaston não saberia diferenciar as duas coisas. Ao se ver ameaçado pela Fera no plano dele de se casar com Bela, Gaston cria o vilão para fazer toda a sociedade ir contra. Reparem que ninguém escuta Bela, que é a garota engraçada que gosta de ler, mas sim Gaston, que é o modelo de admiração da cidade. Impulsionados pelo ódio e medo do desconhecido acabar com todo aquele modelo de sociedade que existia ali, eles vão para uma luta cega sem tentar entender o outro lado. E isso acontece muito na vida real. Tem tanto exemplo que citar um só fica difícil. Mais uma vez o preconceito é retratado, só que, dessa vez, ele trás à tona medidas mais extremas das pessoas. A música acompanha a emoção delas que são impelidas a ser mais violentas e intensas.
- Gaston vs Fera - Quebra do Feitiço
Uma das coisas mais interessantes no final da animação é ver que Gaston, na realidade, é um covarde, apesar de toda pompa em se reafirmar como machão. Ele só foi atrás da Fera por saber que ela é inofensiva e que ele venceria fácil. Ele não esperava que a Fera fosse revidar e isso não aconteceria se Bela não aparecesse. Quando se viu à beira da morte, ele pediu clemência. Muito importante frisar que a Fera estava nervosa e quase o jogou no precipício por impulso, mas parou para pensar, refletiu e viu que deveria dar mais uma chance. Para mim, isso foi uma alusão ao momento em que o príncipe implorou perdão à feiticeira, mas ela não o atendeu. A Fera resolveu dar mais uma chance para Gaston, como se ele pudesse estar no lugar da feiticeira. Só que Gaston, covarde, se aproveitou do momento e o atacou pelas costas de forma completamente desonesta e traiçoeira. O homem íntegro e admirado por todos, na verdade não tem honra e morreu apunhalando o adversário por trás.
Saindo do Gaston e indo para a quebra do feitiço, havia um fator importante que eu não tinha reparado antes. Posso estar errado, mas A Bela e a Fera é talvez a primeira animação onde a princesa salva efetivamente o príncipe. E ela faz isso de uma forma super Disney, declarando o amor que ela sentia. Foi a primeira personagem principal que efetivamente fez a história e não foi apenas parte dela, esperando o príncipe salvá-la. Uma mulher que mostra que ela pode estudar, pode ser aventureira, pode salvar o príncipe, pode colocar um vestido e dançar e pode fazer tudo o que ela quiser, apesar de toda a sociedade ridicularizá-la. Ela não está nem aí para a sociedade, ela quer ser feliz e amada pelo o que ela é.
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